Em uma manhã gelada de dezembro, Victoria Solomon relembrou como a polícia de San Francisco a acordou horas antes e ameaçou levá-la para a prisão se não fosse embora em 10 minutos.
Eles tentaram obrigá-la a sair de uma área pública sem lhe oferecer leito em um abrigo conforme exigido por lei, contou Solomon. Pelo menos desta vez os funcionários municipais não jogaram fora seus pertences, disse. Isso a teria obrigado a encontrar uma nova barraca, roupas de cama e de vestir – sem mencionar novos documentos de identidade e de assistência social, bem como um telefone celular.
“Você pode ser duro com as pessoas o quanto quiser, isso não vai criar magicamente uma casa para elas. E elas não têm poderes de desaparecimento”, disse a diretora executiva da Coalition on Homelessness, Jennifer Friedenbach, uma organização de São Francisco.
Em setembro, a organização e sete indivíduos sem-teto ou sob risco de ficarem desabrigados novamente processaram a cidade de São Francisco por violar suas próprias políticas em relação ao fornecimento de leitos de abrigo.
Eles também disseram que os funcionários da cidade jogaram fora pertences pessoais, como remédios, cadeiras de rodas, próteses, computadores e telefones celulares, em contrariedade às políticas da cidade.
A norte-americana Victoria Solomon, moradora de rua, descansa com seu cachorro e seus pertences, em 13 de dezembro de 2022. — Foto: Godofredo A. Vásquez/ AP
Solomon está entre cerca de 7.800 pessoas sem casa em São Francisco, uma cidade que passou a ser vista como um emblema da impressionante incapacidade da Califórnia de combater a crise dos sem-teto. Proprietários de imóveis, empresas e líderes locais em São Francisco estão frustrados com os sinais visíveis da falta de moradia – o que inclui ruas bloqueadas por cada vez mais barracas e lixo.
Solomon também está frustrada. “Quem disse que não faço parte da comunidade só porque não tenho onde morar?”, disse.
Duas das batidas policiais que ela sofreu este ano aconteceram no bairro de Castro, que ela observou ser um local onde ativistas de direitos civis defenderam os direitos de pessoas marginalizadas no passado. Agora, moradores e empresas próximas chamam a polícia por sua causa.
Solomon, uma mulher de 34 anos, vive em situação de rua há cerca de uma década. Ela contou que é bipolar e luta contra o vício em drogas, e também lida com o luto pelas mortes de seu filho e de sua mãe, que ocorreram com um ano de diferença.
Ela viaja com pouca bagagem – uma mala de rodinhas, barraca, ração e dois cachorros – e tem medo de deixar seus pertences sozinhos. A polícia ameaçou prendê-la usando um mandado de prisão de outro condado – que ela disse ser por porte de drogas leves.
Em meio ao aumento dos aluguéis e à escassez nacional de moradias populares, mais de 100.000 pessoas vivem nas ruas da Califórnia.
Havaí, Oregon e Arizona estão entre outros estados do oeste dos EUA onde mais moradores de rua vivem em carros e barracas do que em abrigos, apesar dos bilhões gastos para reduzir a falta de moradia, incluindo o orçamento anual de São Francisco de US$ 672 milhões (R$ 3,6 bilhões).
Cada vez mais, os defensores das pessoas sem moradia estão lutando na justiça – como no processo aberto em São Francisco, onde o aluguel mensal médio de um imóvel de um quarto é de US$ 3.000 (R$16.000).
Mulher retira pertences de esquina em São Francisco, nos EUA, após exigência de agentes da prefeitura da cidade, em 13 de dezembro de 2022. — Foto: Godofredo A. Vásquez/ AP
Os procuradores municipais negam que os funcionários obriguem as pessoas a mudar de local ou jogar fora itens pessoais ilegalmente, dizendo que existem políticas rígidas que equilibram os direitos individuais com a necessidade de limpar os espaços públicos.
Durante uma audiência virtual na semana passada, a juíza Donna M. Ryu questionou as táticas da cidade, dada a enorme quantidade de dados e relatos de testemunhas oculares fornecidos pela coalizão. Na semana passada, ela proibiu temporariamente São Francisco de evacuar acampamentos de sem-teto.
Em todo o país, a frustração com a crise unificou os líderes democratas e republicanos na adoção de táticas duras contra as pessoas sem moradia, para grande consternação dos defensores dos sem-teto e até mesmo do governo do presidente democrata Joe Biden, que alertou contra as evacuações de acampamentos executadas às pressas.
Este ano, o Tennessee tornou crime acampar ao ar livre em terrenos públicos, e em Portland, no estado de Oregon, o conselho da cidade votou pela criação de pelo menos três grandes áreas para acampamentos e pela proibição de barracas em todos os outros locais.
Barracas de moradores de rua diante de loja de departamentos em São Francisco, nos EUA, em 13 de dezembro de 2022. — Foto: Godofredo A. Vásquez/ AP
Em setembro, o governador da Califórnia, Gavin Newsom, sancionou um plano para fornecer assistência médica a moradores de rua sofrendo de psicoses sem tratamento, mesmo contra a vontade deles – e literalmente arregaçou as mangas para participar das evacuações de acampamentos.
De acordo com o programa, as pessoas que lutam contra o vício em álcool e opioides não se qualificam para o tratamento, a menos que tenham um distúrbio psiquiátrico diagnosticado.
O Departamento de Gerenciamento de Emergências de São Francisco, que abriga o Centro de Operações de Ruas Saudáveis que coordena a evacuação dos acampamentos, disse em um comunicado que os trabalhadores comunitários conversam com os moradores desabrigados com antecedência para explicar o processo e oferecer serviços, incluindo abrigo.
De junho de 2020 a setembro de 2022, São Francisco realizou 1.200 desmantelamentos formais de acampamentos, em que os trabalhadores comunitários encontraram mais de 10.000 pessoas, de acordo com o departamento de gerenciamento de emergências.
Morador de rua de São Francisco, nos Estados Unidos, dentro de barraca, em 13 de dezembro de 2022.
Também há pedidos informais para que os sem-teto se mudem, como o que Solomon enfrentou, então não é possível saber a escala total das ações policiais executadas, ou ameaçadas de serem executadas, contra os sem-teto.
Os donos de empresas estão fartos, não necessariamente de pessoas desabrigadas, mas da cidade que as ignora, disse Ryen Motzek, presidente da organização Mission Merchants Association. “É uma questão geral de limpeza e segurança, esse é o problema número um que a cidade enfrenta”, disse ele.
Mas Toro Castaño, uma das sete pessoas que apresentaram queixas individuais, disse que, sem moradia acessível, as pessoas desabrigadas como ele são forçadas a se mudar de um lugar para outro. “Vamos literalmente atravessar a rua – na outra direção”, disse ele. “Em uma semana, podemos nos mudar 14 vezes. Apenas indo de uma esquina a outra.”
Em declaração judicial, ele disse que em agosto de 2020 lhe deram duas horas para deixar sua barraca, mas o comandante do incidente declarou que tudo apresentava risco de incêndio, então os funcionários do município jogaram seus pertences em um caminhão de lixo.
Ele perdeu o quimono de casamento de sua falecida mãe, seu computador MacBook Pro, um aquecedor movido a bateria e uma bicicleta no valor de US$ 1.400 (R$7.600).
A equipe de abordagem ofereceu a ele uma cama em um abrigo religioso, mas ele recusou por medo de se infectar com o coronavírus. Atualmente ele está em um quarto de hotel pago pela prefeitura.
Os defensores dizem que muitas pessoas sem-teto preferem ficar ao ar livre do que em abrigos, onde correm o risco de contrair o coronavírus, além de enfrentar abusos ou ameaças de violência. Pessoas sem-teto que têm animais de estimação, trabalham no turno da noite, necessitam de serviços de saúde mental ou têm transtornos por uso de substâncias enfrentam dificuldade em encontrar um abrigo que os aceite.
Tremendo dentro de uma tenda lotada, Dylan Miner tentou ficar em pé. “Você pode recuperar suas coisas, mas dá muito trabalho”, disse ele. Durante uma abordagem recente, ele disse que os funcionários do município descartaram seu colchão e os estrados de madeira que o mantinham fora da calçada – que ainda estava molhada pela chuva torrencial.
Miner, de 34 anos, trabalha com carpintaria, conserta bicicletas e revende itens que compra ou encontra.
A prefeitura o colocou em um hotel no centro da cidade por dez meses durante a pandemia, mas quando o programa foi encerrado, ele não conseguiu encontrar uma nova moradia. Ele não faz parte do processo judicial, mas manifestou apoio à iniciativa.
Ninguém está satisfeito com a resposta das instituições, disse Friedenbach. Ela espera que o processo catalise uma “séria transformação” na forma como a cidade trata os desabrigados.
“Isso está realmente ligado a uma luta maior por dignidade”, disse ela. “E uma luta maior pelo reconhecimento da humanidade das pessoas que são pobres demais para pagar aluguel.”